sábado, 28 de novembro de 2015

A hora da união



De toda a parte chega o segredo de Deus
Eis que todos correm, desconcertados
Dele, porque em todas as almas estão sedentas, chega o grito do aguadeiro
Todos bebem o leite da generosidade divina
E querem agora conhecer o seio de sua nutris
Apartados, anseiam por ver o momento do encontro e da união
A cada nascer do sol oram juntos: muçulmanos, cristãos, judeus
Abençoado todo aquele em cujo coração ressoa o grito celeste que chama 'Vem. Limpa bem teus ouvidos e recebe nítida essa voz'
O som do céu chega como um sussurro
Não manches teus olhos com a face dos homens
Vê que chega o imperador da vida eterna
Se te turvaram os olhos
Lava-os com lágrimas pois nelas encontrarás a cura de teus males
Acaba de chegar do Egito uma caravana de Açúcar
E já se ouvem os sinos e os passos cansados
Silêncio. Eis que chega o rei que vai completar o poema

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Os opostos





Mesmo que te aconteça uma desgraça
Considera com cuidado
Olha bem aquele que te causa esse percalço
A vista que contempla o fluxo e refluxo das coisas boas e más
Abre para ti uma passagem do infortúnio para a felicidade
Vês. Portanto um estado leva-te a outro
O estado oposto gerando-se ao oposto em troca
Se não sofreres temores depois de alegrias
Como podes esperar prazeres depois de desgostos?
Enquanto temes a condenação do anjo da esquerda
Os homens esperam a bênção do anjo da direita
Que possas ganhar duas asas
Um pássaro com uma só asa é impotente para voar
Ao bem intencionado

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Sobre o amor




Através do amor o que é amargo parece doce
Através do amor pedaços de cobre transformam-se em ouro
Através do amor as dores são como balsamos
Através do amor os espinhos se tornam rosas
Através do amor o vinagre vira vinho doce
Através do amor o pelourinho de transforma em trono
Através do amor um revés da fortuna parece boa sorte
Através do amor uma prisão parece um jardim de rosas
Sem amor um jardim parece uma grelha cheia de cinzas
Através do amor o fogo ardente é uma luz agradável
Através do amor o demônio se torna uma huri
Através do amor pedras duras tornam-se macias como manteiga
Sem amor a moliceira de transforma em duro ferro
Através do amor a tristeza é como alegria
Através do amor os vampiros se convertem em anjos
Através do amor ferrões são como mel
Através do amor os leões são dóceis como camundongos
Através do amor a doença é saúde
Através do amor a ira é como misericórdia
Através do amor os mortos ressuscitam
Através do amor o rei torna-se escravo

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Não encontrarás



Segura o manto de seus valores pois ele logo desaparecerá
Se o retesa como um arco, ele escapará como flecha
Vê quantas formas ele assume e quantos truques ele inventa
Se está presente em forma, então há de sumir pela alma
Se o procuras no alto do céu, ele brilha como a lua no lago
E entras na água para captura-lo e de novo ele foge para o céu
Se o procuras no espaço vazio, lá está no lugar de sempre
Caminhas para este lugar e de novo ele foge para o vazio
Uma flecha que sai do arco como um pássaro que voa da tua imaginação
O absoluto há de fugir sempre do que é incerto
Escapo daqui e dali para que minha beleza não se prenda a isso ou aquilo
Como o vento sei voar e por amor a rosa sou como a brisa
Também a rosa há de escapar ao outono
Vê como esse eclipse te cerca
Até seu nome se desfaz ao sentir tua ânsia de pronunciá-lo
Ele te escapará a menor tentativa de fixar sua forma numa imagem
A pintura sumirá da tela
E os signos fugirão de teu coração

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Mundos infinitos



A cada instante a voz do amor nos circunda e partimos em direção ao céu profundo
Por que deter-se a olhar ao redor?
Já estivemos antes por esses espaços e até os anjos os reconhecem
Retornemos ao mestre, que é lá nosso lugar
Estamos acima das esferas celestes, somos superiores aos próprios anjos
Além da dualidade nossa meta é a glória suprema
Quão distante está o mundo terreno do reino da pura substância?
Por que descemos tanto?
Apanhemos nossas coisas e subamos mais uma vez
Sorte não nos faltará ao entregarmos de novo nossas almas
Nossa caravana tem por guia Mustafá, a glória do mundo
Ao contemplar sua face a lua partiu-se em dois pedaços
Não pôde suportar tanta beleza e fez-se feliz mendicante frente àquela riqueza
A doçura que o vento nos traz é o perfume de seus cabelos
A face que traz consigo a luz do dia reflete o brilho de seus pensamentos
Olha bem dentro de teu coração e vê a lua que se despedaça
Por que teus olhos ainda fogem dessa visão maravilhosa?
O homem emerge do oceano da alma como os pássaros do mar
Como há de ser terra seca o lugar do descanso final de uma ave nascida nesse mar?
Somos pérolas desse oceano. A ele pertencemos. Cada um de nós.
Seguimos o movimento das ondas que se arrastam até a terra e então retornam ao mar
E eis que surge a última onda e arremessa o navio do corpo à terra
E quando essa onda regressa naufraga a alma em seu oceano
E este é o momento da união

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Eu sou tu


Viemos girando do nada
Espalhando estrelas como pó
As estrelas puseram-se em círculo
E nós ao centro, dançamos com elas
Como a pedra do moinho em torno de Deus
Gira a roda do céu
Segura um raio dessa roda e terás a mão decepada
Girando e girando essa roda dissolve todo e qualquer apego
Não estivesse apaixonada, ela mesma gritaria: 'Basta!'
Até quando há de seguir esse giro?
Cada átomo gira desnorteado
Mendigos circulam entre as mesas
Cães rondam um pedaço de carne
O amante gira em torno de seu próprio coração
Envergonhado ante tanta beleza
Giro ao redor de minha vergonha
Vem. Ouve a música do Sama
Vem. Imite ao som dos tambores
Aqui celebramos
Somos todos a verdade
Em êxtase estamos
Embriagados sim, mas de um vinho que não se colhe na videira
O que quer que se pense de nós, em nada parecerá o que somos
Giramos e giramos em êxtase
Esta é a noite do Sama
Há luz agora!
Luz! Luz!
Eis o amor verdadeiro que diz à mente adeus
Este é o dia do adeus. Adeus! Adeus!
Todo coração que arde nessa noite é amigo da música
Ardendo por teus lábios meu coração transborda de minha boca

Silêncio
Silêncio
Mas feito de pensamento, afeto e paixão
O que resta é nada além de carne e ossos
Por que nos falam de templo de oração, de atos piedosos?
Somos a caça e o caçador
Outono e primavera, noite e dia
O visível e o invisível
Somos o tesouro do espírito
Somos a alma do mundo
Livres do peso que vergasta o corpo
Prisioneiros não somos do tempo nem do espaço
Nem mesmo da terra em que pisamos
No amor fomos gerados
No amor nascemos

domingo, 22 de novembro de 2015

Estou partindo



Fica
Se te interessa
Através dos jardins, através dos pomares
Estou partindo
Meu dia sombria sem sua face
Eis porquê me dirijo agora à chama brilhante no céu
Minha alma corre à frente e diz:
'O corpo é lento demais. Estou partindo.'
Maçãs exalam no pomar de minha alma
Se o perfume me invade me transporta para a colheita das maçãs
Ventos súbitos não me desviarão
Oh montanha de ferro, cada um de meus passos dirige-se ao amado
Minha cabeça rompeu-se com a dor de sua perda
Em busca de uma nova vida, cabeça erguida
Estou partindo
Sou fogo vivo mas pareço betume
Quero ser óleo límpido em tua mão para depor este parto
Pareço imóvel como a montanha, mas sigo pouco a pouco em direção à pequena fresta
Estou chegando
Tocaste a órbita do coração celeste
Agora fica aqui
Pudeste ver a lua nova
Agora fica
Sofreste em excesso por tua ignorância
Carregaste teus trapos para um lado e para o outro
Agora fica aqui
Teu tempo acabou
Escutaste tudo que se pode dizer sobre a beleza desse amante
Fica aqui agora
Juraste em teu coração que havia leite nesses seios
Agora que provaste desse leite, fica.

sábado, 21 de novembro de 2015

Retorna à raiz de ti mesmo


Não te afastes
Chega bem perto
Cria. Não sejas infiel
Encontra o antídoto no veneno
Vem. Retorna à raiz da raiz de ti mesmo

Moldado em barro, misturado porém a substância da certeza
Tu, guardião do tesouro da luz sagrada
Vem. Retorna à raiz da raiz de ti mesmo

Ao vislumbrares a dissolução
Serás arrancado de ti mesmo
E libertado de tantas amarras
Vem. Retorna à raiz da raiz de ti mesmo

Nasceste dos filhos, dos filhos de Deus
Mas fixaste muito abaixo a tua mira
Como pode ser feliz assim?
Vem. Retorna à raiz da raiz de ti mesmo

És o talismã que protege o tesouro
E também a mina onde se encontra
Abre teus olhos. Vê o que está oculto
Vem. Retorna à raiz da raiz de ti mesmo

Nasceste de um raio da majestade de Deus
E carregas a bênção de uma estrela generosa
Por que sofrer nas mãos do que não existe?
Vem. Retorna à raiz da raiz de ti mesmo

Aqui chegaste embriagado e dócil
Da presença daquele doce amigo
Que com o olhar cheio de fogo, roubou nossos corações
Vem. Retorna à raiz da raiz de ti mesmo

Nosso mestre e anfitrião
Colocou a taça eterna diante de ti
Glória Deus, que vinho tão raro!
Vem. Retorna à raiz da raiz de teu ser

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Não encontrarás




Segura o manto de seus valores pois ele logo desaparecerá
Se o retesa como um arco, ele escapará como flecha
Vê quantas formas ele assume e quantos truques ele inventa
Se está presente em forma, então há de sumir pela alma
Se o procuras no alto do céu, ele brilha como a lua no lago
E entras na água para captura-lo e de novo ele foge para o céu
Se o procuras no espaço vazio, lá está no lugar de sempre
Caminhas para este lugar e de novo ele foge para o vazio
Uma flecha que sai do arco como um pássaro que voa da tua imaginação
O absoluto há de fugir sempre do que é incerto
Escapo daqui e dali para que minha beleza não se prenda a isso ou aquilo
Como o vento sei voar e por amor a rosa sou como a brisa
Também a rosa há de escapar ao outono
Vê como esse eclipse te cerca
Até seu nome se desfaz ao sentir tua ânsia de pronunciá-lo
Ele te escapará a menor tentativa de fixar sua forma numa imagem
A pintura sumirá da tela
E os signos fugirão de teu coração

O que não somos - aquele lugar




A dor que atraímos transforma-se em alegria
Vem, tristeza, aos nossos braços
Somos nós o elixir dos sofrimentos
Bicho da seda, come as folhas e faz seu casulo
Não possuímos a folhagem dessa terra
Somos nós o casulo do amor
Apenas somos, quando em nada nos tornamos
É quando perdemos nossas pernas, que nos tornamos corredores
Calo minha boca, tirei o resto do poema, de boca fechada

Dentro deste mundo há outro mundo
Impermeável às palavras
Nele nem a vida teme a morte, nem a primavera dá lugar ao outono
Histórias e lendas surgem dos tetos e paredes
Até mesmo as rochas e árvores exalam poesia
Aqui a coruja transforma-se em pavão
O lobo, em belo pastor
Para mudar a paisagem, basta mudar o que sentes
E se queres passear por esses lugares, basta expressar o desejo
Fixa o olhar num deserto de espinhos
Já é agora um jardim florido
Vês aquele bloco de pedra no chão?
Já se move, e dele surge a mina de rubis
Lava tuas mãos e teu rosto nas águas deste lugar
Que aqui te prepara um fausto banquete
Aqui todo ser gera um anjo
E quando me vêem subindo aos céus, os cadáveres retornam à vida
De certo viste as árvores crescendo da terra
Mas quem há de ter visto o nascimento do paraíso?
Viste também as águas dos mares e rios
Mas quem há de ter visto o nascer de uma única gota d'água ou uma cintura de guerreiros?
Quem haveria de imaginar essa morada?
Esse céu? Esse jardim do paraíso?
Tu, que ouves este poema
Traduzi-o
Diz a todos o que aprendeste sobre este lugar

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Rubayat 29-3


Entrado no universo sem saber porque, nem de onde
Tal qual a água, queira ou não, afluir
E fora dele como vento em descampado soprando, queira ou não
Sem saber pra onde ir

Entrado no universo sem saber porque, nem de onde
Tal qual a água, queira ou não, afluir
E fora dele como vento em descampado soprando, queira ou não
Sem saber pra onde ir

Entrado no universo sem saber porque, nem de onde
Tal qual a água, queira ou não, afluir
E fora dele como vento em descampado soprando, queira ou não
Sem saber pra onde ir

Entrado no universo sem saber porque, nem de onde
Tal qual a água, queira ou não, afluir
E fora dele como vento em descampado soprando, queira ou não
Sem saber pra onde ir

Entrado no universo sem saber porque, nem de onde
Tal qual a água, queira ou não, afluir
E fora dele como vento em descampado soprando, queira ou não
Sem saber pra onde ir

Maiko & Voix Yuki



A tua imagem no espelho
É o meu melhor poema
Mas, seja rápido, ela apaga
É o meu último "te amo"!

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Destino do coração



Os olhos foram feitos para ver coisas insólitas
Fez-se a alma para gozar da alegria e do prazer
O coração foi destinado a embriagar-se na beleza do amigo ou na aflição da ausência
A meta do amor é voar até o firmamento
A do intelecto, desvendar as leis e o mundo
Para além das causas estão os mistérios, as maravilhas
Os olhos ficarão cegos quando virem que todas as coisas são apenas meios para o saber
O amante, difamado neste mundo por uma centena de acusações, receberá no momento da união cem títulos e nomes
Peregrinar nas areias do deserto nos exige suportar beber leite de camelo, ser pilhados por beduínos
Apaixonado, o peregrino beija a pedra negra ansioso por sentir mais uma vez o toque dos lábios do amigo
E degustar como antes o seu beijo
Oh alma, não cunhe as moedas com o ouro das palavras
O buscador é aquele que vai à própria mina de ouro

Isumi Shikibu

Se o cavalo dele

tivesse sido domado

pela minha mão –

eu tê-lo-ia ensinado

a não seguir mais ninguém.





Mesmo quando um rio

de lágrimas atravessa

e molha este corpo,

não chega para apagar

todo o fogo do amor.





Porque não terei

pensado nisto já antes?

Este corpo meu

ao recordar tanto o teu

tem a marca que deixaste.





Penso: “nos meus sonhos

poderemos encontra-nos” …

Virando a almofada,

eu ando às voltas na cama

incapaz de adormecer.





Consumi o corpo

a desejar o regresso

do que não voltou.

É agora um vale profundo

o que foi meu coração




Deixada aqui

a envelhecer no mundo

sem ti ao meu lado,

as flores perdem a beleza

tingidas de negra cor.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Não encontrarás



Segura o manto de seus valores pois ele logo desaparecerá
Se o retesa como um arco, ele escapará como flecha
Vê quantas formas ele assume e quantos truques ele inventa
Se está presente em forma, então há de sumir pela alma
Se o procuras no alto do céu, ele brilha como a lua no lago
E entras na água para captura-lo e de novo ele foge para o céu
Se o procuras no espaço vazio, lá está no lugar de sempre
Caminhas para este lugar e de novo ele foge para o vazio
Uma flecha que sai do arco como um pássaro que voa da tua imaginação
O absoluto há de fugir sempre do que é incerto
Escapo daqui e dali para que minha beleza não se prenda a isso ou aquilo
Como o vento sei voar e por amor a rosa sou como a brisa
Também a rosa há de escapar ao outono
Vê como esse eclipse te cerca
Até seu nome se desfaz ao sentir tua ânsia de pronunciá-lo
Ele te escapará a menor tentativa de fixar sua forma numa imagem
A pintura sumirá da tela
E os signos fugirão de teu coração

Rubayat 23-49 (1)



Ah, é tudo um tabuleiro de noites e dias
Os homens são peças e o fado temerário
Com elas joga e move e toma e dá o mate
E uma a uma as recolhe, e vai guardar no armário
No céu, a mão esquerda da alvorada
Eu sonho. Na taverna uma voz escuto na algazarra: 'Despertai meus pequenos, e enchei bem o copo antes que seque o vinho da vida em sua jarra'
Façamos o que é mais do que há por fazer antes também que nós ao pó vamos enfim
Pó vai para o pó, sobre o pó vai jazer, sem vinho, sem canções e sem cantor. Sem fim


É tudo um tabuleiro de noites e dias
Os homens são peças e o fado temerário
Com elas joga e move e toma e dá o mate
E uma a uma as recolhe, e vai guardar no armário
Façamos o que é mais do que há por fazer antes também que nós ao pó vamos enfim
Pó vai para o pó, sobre o pó vai jazer, sem vinho, sem canções e sem cantor. Sem fim

Ono no Komachi

O meu desejo de ti

é forte para contê-lo –

assim ninguém vai culpar-me

se à noite for ter contigo

pela estrada de meus sonhos.



Não há como vê-lo

nesta noite sem luar –

estou deitada e desperta,

os seios ardendo em desejo

e o coração em chamas.



Pensei ter colhido

a flor do esquecimento

só para mim mesma;

mas encontrei-a a crescer

também no coração dele.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Rubayat 23-49 (2)



Debaixo de um arbusto o pão e uma garrafa de vinho e meus poemas


Tudo que preciso


E tu, que do meu lado cantas um deserto e o deserto se torna então no paraíso

Soneto de Fidelidade – Vinicius de Moraes


De tudo ao meu amor serei atento

Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto

Que mesmo em face do maior encanto

Dele se encante mais meu pensamento.



Quero vivê-lo em cada vão momento

E em seu louvor hei de espalhar meu canto

E rir meu riso e derramar meu pranto

Ao seu pesar ou seu contentamento



E assim, quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama



Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure.

domingo, 15 de novembro de 2015

A Floresta


Na floresta não existe nem rebanho, nem pastor
Quando o inverno caminha, segue seu distinto curso como faz a primavera
Os homens nasceram escravos daquele que repudia a submissão
Se ele um dia se levanta, lhes indica o caminho, com ele caminharão
Dá-me a flauta e canta!
O canto é o pasto das mentes
E o lamento da flauta perdura mais que rebanho e pastor


Na floresta não existe ignorante ou sábio
Quando os ramos se agitam, a ninguém reverenciam
O saber humano é ilusório como a cerração dos campos que se esvai quando o sol se levanta no horizonte
Dá-me a flauta e canta!
O canto é o melhor saber, e o lamento da flauta sobrevive ao cintilar das estrelas


Na floresta só existe lembrança dos amorosos
Os que dominaram o mundo e oprimiram e conquistaram, seus nomes são como letras dos nomes dos criminosos
Conquistador entre nós é aquele que sabe amar
Dá-me a flauta e canta!
E esquece a injustiça do opressor
Pois o lírio é uma taça para o orvalho e não para o sangue


Na floresta não há crítico nem sensor
Se as gazelas se perturbam quando avistam companheiro, a águia não diz: 'Que estranho'
Sábio entre nós é aquele que julga estranho apenas o que é estranho
Ah, dá-me a flauta e canta!
O canto é a melhor loucura e o lamento da flauta sobrevive aos ponderados e aos racionais


Na floresta não existem homens livres ou escravos
Todas as glórias são vãs como borbulhas na água
Quando a amendoeira lança suas flores sobre o espinheiro, não diz: 'Ele é desprezível e eu sou um grande senhor'
Dá-me a flauta e canta!
Que o canto é glória autêntica e o lamento da flauta sobrevive ao nobre e ao vil


Na floresta não existe fortaleza ou fragilidade
Quando o leão ruge não dizem: 'Ele é temível'
A vontade humana é apenas uma sombra que vagueia no espaço do pensamento e o direito dos homens fenece como folhas de outono
Dá-me a flauta e canta!
O canto é a força do espírito e o lamento da flauta sobrevive ao apagamento dos sóis


Na floresta não há morte nem apuros
A alegria não morre quando se vai a primavera
O pavor da morte é uma quimera que se insinua no coração
Pois quem vive uma primavera é como se houvesse vivido séculos
Dá-me a flauta e canta!
O canto é o segredo da vida eterna e o lamento da flauta permanecerá após findar-se a existência

Namorados no Mirante – Vinicius de Moraes

 Eles eram mais antigos que o silêncio

A perscrutar-se intimamente os sonhos

Tal como duas súbitas estátuas

Em que apenas o olhar restasse humano.

Qualquer toque, por certo, desfaria

Os seus corpos sem tempo em pura cinza.

Remontavam às origens – a realidade

Neles se fez, de substância, imagem.

Dela a face era fria, a que o desejo

Como um hictus, houvesse adormecido

Dele apenas restava o eterno grito

Da espécie – tudo mais tinha morrido.

Caíam lentamente na voragem

Como duas estrelas que gravitam

Juntas para, depois, num grande abraço

Rolarem pelo espaço e se perderem

Transformadas no magma incandescente

Que milênios mais tarde explode em amor

E da matéria reproduz o tempo

Nas galáxias da vida no infinito.



Eles eram mais antigos que o silêncio…

sábado, 14 de novembro de 2015

Não encontrarás




Segura o manto de seus valores pois ele logo desaparecerá
Se o retesa como um arco, ele escapará como flecha
Vê quantas formas ele assume e quantos truques ele inventa
Se está presente em forma, então há de sumir pela alma
Se o procuras no alto do céu, ele brilha como a lua no lago
E entras na água para captura-lo e de novo ele foge para o céu
Se o procuras no espaço vazio, lá está no lugar de sempre
Caminhas para este lugar e de novo ele foge para o vazio
Uma flecha que sai do arco como um pássaro que voa da tua imaginação
O absoluto há de fugir sempre do que é incerto
Escapo daqui e dali para que minha beleza não se prenda a isso ou aquilo
Como o vento sei voar e por amor a rosa sou como a brisa
Também a rosa há de escapar ao outono
Vê como esse eclipse te cerca
Até seu nome se desfaz ao sentir tua ânsia de pronunciá-lo
Ele te escapará a menor tentativa de fixar sua forma numa imagem
A pintura sumirá da tela
E os signos fugirão de teu coração

Mundos infinitos

A cada instante a voz do amor nos circunda e partimos em direção ao céu profundo

Por que deter-se a olhar ao redor?

Já estivemos antes por esses espaços e até os anjos os reconhecem

Retornemos ao mestre, que é lá nosso lugar

Estamos acima das esferas celestes, somos superiores aos próprios anjos

Além da dualidade nossa meta é a glória suprema

Quão distante está o mundo terreno do reino da pura substância?

Por que descemos tanto?



Apanhemos nossas coisas e subamos mais uma vez

Sorte não nos faltará ao entregarmos de novo nossas almas

Nossa caravana tem por guia Mustafá, a glória do mundo

Ao contemplar sua face a lua partiu-se em dois pedaços

Não pôde suportar tanta beleza e fez-se feliz mendicante frente àquela riqueza

A doçura que o vento nos traz é o perfume de seus cabelos

A face que traz consigo a luz do dia reflete o brilho de seus pensamentos
Olha bem dentro de teu coração e vê a lua que se despedaça

Por que teus olhos ainda fogem dessa visão maravilhosa?

O homem emerge do oceano da alma como os pássaros do mar

Como há de ser terra seca o lugar do descanso final de uma ave nascida nesse mar?

Somos pérolas desse oceano. A ele pertencemos. Cada um de nós.

Seguimos o movimento das ondas que se arrastam até a terra e então retornam ao mar

E eis que surge a última onda e arremessa o navio do corpo à terra

E quando essa onda regressa naufraga a alma em seu oceano

E este é o momento da união 

Monólogo de Orfeu – Vinicius de Moraes

Mulher mais adorada!

Agora que não estás,

deixa que rompa o meu peito em soluços

Te enrustiste em minha vida,

e cada hora que passa

É mais por que te amar

a hora derrama o seu óleo de amor em mim, amada.



E sabes de uma coisa?

Cada vez que o sofrimento vem,

essa vontade de estar perto, se longe

ou estar mais perto se perto

Que é que eu sei?

Este sentir-se fraco,

o peito extravasado

o mel correndo,

essa incapacidade de me sentir mais eu, Orfeu;

Tudo isso que é bem capaz

de confundir o espírito de um homem.



Nada disso tem importância

Quando tu chegas com essa charla antiga,

esse contentamento, esse corpo

E me dizes essas coisas

que me dão essa força, esse orgulho de rei.



Ah, minha Eurídice

Meu verso, meu silêncio, minha música.

Nunca fujas de mim.

Sem ti, sou nada.

Sou coisa sem razão, jogada, sou pedra rolada.

Orfeu menos Eurídice: coisa incompreensível!

A existência sem ti é como olhar para um relógio

Só com o ponteiro dos minutos.

Tu és a hora, és o que dá sentido

E direção ao tempo,

minha amiga mais querida!



Qual mãe, qual pai, qual nada!

A beleza da vida és tu, amada

Milhões amada! Ah! Criatura!

Quem poderia pensar que Orfeu,

Orfeu cujo violão é a vida da cidade

E cuja fala, como o vento à flor

Despetala as mulheres –

que ele, Orfeu,

Ficasse assim rendido aos teus encantos?



Mulata, pele escura, dente branco

Vai teu caminho

que eu vou te seguindo no pensamento

e aqui me deixo rente quando voltares,

pela lua cheia

Para os braços sem fim do teu amigo



Vai tua vida, pássaro contente

Vai tua vida que estarei contigo.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Sobre o Amor



Através do amor o que é amargo parece doce
Através do amor pedaços de cobre transformam-se em ouro
Através do amor as dores são como balsamos
Através do amor os espinhos se tornam rosas
Através do amor o vinagre vira vinho doce
Através do amor o pelourinho de transforma em trono
Através do amor um revés da fortuna parece boa sorte
Através do amor uma prisão parece um jardim de rosas
Sem amor um jardim parece uma grelha cheia de cinzas
Através do amor o fogo ardente é uma luz agradável
Através do amor o demônio se torna uma huri
Através do amor pedras duras tornam-se macias como manteiga
Sem amor a moliceira de transforma em duro ferro
Através do amor a tristeza é como alegria
Através do amor os vampiros se convertem em anjos
Através do amor ferrões são como mel
Através do amor os leões são dóceis como camundongos
Através do amor a doença é saúde
Através do amor a ira é como misericórdia
Através do amor os mortos ressuscitam
Através do amor o rei torna-se escravo

Os espaços do sono – Robert Desnos

À noite há naturalmente as sete maravilhas do mundo e a grandeza e o trágico e o encanto.

Nela as florestas se chocam confusamente com criaturas de lenda escondidas nos bosques.

Há você.

Na noite há o passo do caminhante e o do assassino e o do agente de polícia e a luz do revérbero e a da lanterna do trapeiro.

Há você.

Na noite passam os trens e os barcos e a miragem dos países onde é dia.

Os derradeiros sopros do crepúsculo e os primeiros arrepios da aurora.

Há você.



Uma ária de piano, um brilho de voz.

Uma porta range. Um relógio.

E não somente os seres e as coisas e os ruídos materiais.

Mas ainda eu que me persigo ou sem cessar me ultrapasso.

Há você a imolada, você que eu espero.

Por vezes estranhas figuras nascem no instante do sono e desaparecem.

Quando cerro os olhos, florações fosforescentes aparecem e murcham e renascem como carnosos fogos de artifício.

Países desconhecidos que percorro em companhia de criaturas.

E há você sem dúvida, ó bela e discreta espiã.

E a alma palpável do espaço.

E os perfumes do céu e das estrelas e o canto do galo de há 2 000 anos e o choro do pavão em parques em chama e beijos.

Mãos que se apertam sinistramente numa luz baça e eixos que rangem sobre estradas medusantes.

Há você sem dúvida que não conheço, que conheço ao contrário.

Mas que, presente em meus sonhos, te obstinas a neles se deixar adivinhar sem aparecer.

Você que permanece inapreensível na realidade e no sonho.

Você que pertence a mim por minha vontade de possuí-la em ilusão, mas que não aproxima seu rosto do meu como meus olhos fechados tanto ao sonho como à realidade.

Você que a despeito de uma retórica fácil em que a onda morre nas praias, em que a gralha voa em usinas em ruínas, em que a madeira apodrece rachando-se sob um sol de chumbo.

Você que está na base de meus sonhos e que excita meu espírito pleno de metamorfoses e que me deixa sua luva quando beijo sua mão.

À noite há as estrelas e o movimento tenebroso do mar, dos rios, das florestas, das idades, das relvas, dos pulmões de milhões e milhões de seres.

À noite há as maravilhas do mundo.

À noite não há anjos da guarda, mas há o sono.

À noite há você.

No dia também.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

A hora da união



De toda a parte chega o segredo de Deus
Eis que todos correm, desconcertados
Dele, porque em todas as almas estão sedentas, chega o grito do aguadeiro
Todos bebem o leite da generosidade divina
E querem agora conhecer o seio de sua nutris
Apartados, anseiam por ver o momento do encontro e da união
A cada nascer do sol oram juntos: muçulmanos, cristãos, judeus
Abençoado todo aquele em cujo coração ressoa o grito celeste que chama
'Vem. Limpa bem teus ouvidos e recebe nítida essa voz'
O som do céu chega como um sussurro
Não manches teus olhos com a face dos homens
Vê que chega o imperador da vida eterna
Se te turvaram os olhos
Lava-os com lágrimas pois nelas encontrarás a cura de teus males
Acaba de chegar do Egito uma caravana de Açúcar
E já se ouvem os sinos e os passos cansados
Silêncio. Eis que chega o rei que vai completar o poema

Poema XLIV – Pablo Neruda

Saberás que não te amo e que te amo

pois que de dois modos é a vida,

a palavra é uma asa do silêncio,

o fogo tem a sua metade de frio.



Amo-te para começar a amar-te,

para recomeçar o infinito

e para não deixar de amar-te nunca:

por isso não te amo ainda.



Amo-te e não te amo como se tivesse

nas minhas mãos a chave da felicidade

e um incerto destino infeliz.



O meu amor tem duas vidas para amar-te.

Por isso te amo quando não te amo

e por isso te amo quando te amo.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Lua de Shabriz



Com a maré da manhã surgiu no céu uma lua
De lá desceu e fitou-me
Como falcão que arrebata o pássaro essa lua agarrou-me e cruzou o céu
Quando olhei para mim já não me vi
Naquela lua meu corpo se tornara, por graça, sutil e com alma
Viajei então em estado de alma e nada mais vi se não o amor
Até que o segredo do saber divino me foi por inteiro revelado
As nove esferas celestes fundiram-se na lua e o vaso do meu ser dissolveu-se inteiro no mar
Quando o mar quebrou-se em ondas a sabedoria divina lançou sua voz ao longe
Assim tudo ocorreu
Assim tudo foi feito
Logo o mar inundou-se de espumas e cada gota de espuma tomou forma e corpo
Ao receber o chamado do mar, cada corpo de espuma se desfez e tornou-se espírito no oceano
Sem a majestade do amado, não se poderia contemplar a dor, nem tornar-se má

Bilhete – Mário Quintana

Se tu me amas, ama-me baixinho

Não o grites de cima dos telhados

Deixa em paz os passarinhos

Deixa em paz a mim!

Se me queres,

enfim,

tem de ser bem devagarinho, Amada,

que a vida é breve, e o amor mais breve ainda…

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Elegia: Indo para o leito – John Donne

Vem, Dama, que eu desafio a paz,

Até que eu lute, em luta o corpo jaz.

Como o inimigo diante do inimigo,

Canso-me de esperar se nunca brigo.

Solta esse cinto sideral que vela,

Céu cintilante, uma área ainda mais bela.

Desata esse corpete constelado,

Feito para deter o olhar ousado.

Entrega-te ao torpor que se derrama

De ti a mim, dizendo: hora da cama.

Tira o espartilho, quero descoberto

O que ele guarda, quieto, tão de perto.

O corpo que de tuas saias sai

É um campo em flor quando a sombra se esvai.

Arranca essa grinalda armada e deixa

Que cresça o diadema da madeixa.

Tira os sapatos e entra sem receio

Nesse templo de amor que é nosso leito.

Os anjos mostram-se num branco véu aos homens.

Tu, meu Anjo, é como o Céu

De Maomé. E se no branco têm contigo

Semelhança os espíritos, distingo:

O que o meu Anjo branco põe não é

O cabelo mas sim a carne em pé.

Deixa que a minha mão errante adentre

Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.

Minha América! Minha terra à vista,

Reino de paz, se um homem só a conquista,

Minha Mina preciosa, meu Império!

Feliz de quem penetre o teu mistério!

Liberto-me ficando teu escravo;

Onde cai minha mão, meu selo gravo.

Nudez total! Todo prazer provém

De um corpo (como a alma sem corpo)

Sem vestes. As jóias que mulher ostenta

São como bolas de ouro de Atlanta:

Os olhos do tolo que uma gema inflama

Ilude-se com ela e perde a dama.

Como encadernação vistosa, feita

Para iletrados, a mulher se enfeita;

Mas ela é um livro místico e somente

A alguns (a qual tal graça se consente)

É dado lê-la. Eu sou um que sabe;

Como se diante da parteira, abre-Te:

Atira, sim, o linho branco fora,

Nem penitência nem decência agora.

Para ensinar-te eu me desnudo antes:

A coberta de um homem te é bastante

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Amor que morre – Florbela Espanca

O nosso amor morreu… Quem o diria!

Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta,

Ceguinha de te ver, sem ver a conta

Do tempo que passava, que fugia!



Bem estava a sentir que ele morria…

E outro clarão, ao longe, já desponta!

Um engano que morre… e logo aponta

A luz doutra miragem fugidia…



Eu bem sei, meu Amor, que pra viver

São precisos amores, pra morrer,

E são precisos sonhos para partir.



E bem sei, meu Amor, que era preciso

Fazer do amor que parte o claro riso

De outro amor impossível que há de vir!

Amar – Florbela Espanca

Eu quero amar, amar perdidamente!

Amar só por amar: Aqui… além…

Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente

Amar! Amar! E não amar ninguém!



Recordar? Esquecer? Indiferente!…

Prender ou desprender? É mal? É bem?

Quem disser que se pode amar alguém

Durante a vida inteira é porque mente!



Há uma Primavera em cada vida:

É preciso cantá-la assim florida,

Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!



E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada

Que seja a minha noite uma alvorada,

Que me saiba perder… pra me encontrar…


Florbela Espanca

Poeminha Amoroso – Cora Coralina

Este é um poema de amor

tão meigo, tão terno, tão teu…

É uma oferenda aos teus momentos

de luta e de brisa e de céu…

E eu,

quero te servir a poesia

numa concha azul do mar

ou numa cesta de flores do campo.

Talvez tu possas entender o meu amor.

Mas se isso não acontecer,

não importa.

Já está declarado e estampado

nas linhas e entrelinhas

deste pequeno poema,

o verso;

o tão famoso e inesperado verso que

te deixará pasmo, surpreso, perplexo…

eu te amo, perdoa-me, eu te amo…

Eu Te Amo – Chico Buarque


 Ah, se já perdemos a noção da hora

Se juntos já jogamos tudo fora

Me conta agora como hei de partir



Se ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios

Rompi com o mundo, queimei meus navios

Me diz pra onde é que inda posso ir



Se nós, nas travessuras das noites eternas

Já confundimos tanto as nossas pernas

Diz com que pernas eu devo seguir



Se entornaste a nossa sorte pelo chão

Se na bagunça do teu coração

Meu sangue errou de veia e se perdeu



Como, se na desordem do armário embutido

Meu paletó enlaça o teu vestido

E o meu sapato inda pisa no teu



Como, se nos amamos feito dois pagãos

Teus seios inda estão nas minhas mãos

Me explica com que cara eu vou sair



Não, acho que estás te fazendo de tonta

Te dei meus olhos pra tomares conta

Agora conta como hei de partir

Um poema de amor - Charles Bukowski

todas as mulheres

todos os beijos delas as

formas variadas como amam e

falam e carecem



suas orelhas elas todas têm

orelhas e

gargantas e vestidos

e sapatos e

automóveis e ex-

maridos.



principalmente

as mulheres são muito

quentes elas me lembram a

torrada amanteigada com a manteiga

derretida

nela.



há uma aparência

no olho: elas foram

tomadas, foram

enganadas. não sei mesmo o que

fazer por

elas.



sou

um bom cozinheiro, um bom

ouvinte

mas nunca aprendi a

dançar – eu estava ocupado

com coisas maiores.



mas gostei das camas variadas

lá delas

fumar um cigarro

olhando pro teto. não fui nocivo nem

desonesto. só

um aprendiz.



sei que todas têm pés e cruzam

descalças pelo assoalho

enquanto observo suas tímidas bundas na

penumbra. sei que gostam de mim algumas até

me amam

mas eu amo só umas

poucas.



algumas me dão laranjas e pílulas de vitaminas;

outras falam mansamente da

infância e pais e

paisagens; algumas são quase

malucas mas nenhuma delas é

desprovida de sentido; algumas amam

bem, outra nem

tanto; as melhores no sexo nem sempre

são as melhores em

outras coisas; todas têm limites como eu tenho

limites e nos aprendemos

rapidamente.



todas as mulheres todas as

mulheres todos os

quartos de dormir

os tapetes as

fotos as

cortinas, tudo mais ou menos

como uma igreja só

raramente se ouve

uma risada.



essas orelhas esses

braços esses

cotovelos esses olhos

olhando, o afeto e a

carência me

sustentaram, me

sustentaram.



Charles Bukowski

Quero - Carlos Drummond de Andrade

Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.

Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado,
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?

Quero que me repitas até à exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao dizer: Eu te amo,
desmentes
apagas
teu amor por mim.

Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.

Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso.


Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

As sem razões do amor – Carlos Drummond de Andrade

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
E nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
E com amor não se paga.

Amor é dado de graça
É semeado no vento,
Na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
E a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
Bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
Não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
Feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
E da morte vencedor,
Por mais que o matem (e matam)
A cada instante de amor.

Carlos Drummond de Andrade

Todas as cartas de amor…

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Aniversário - Fernando Pessoa


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui…
A que distância!…
(Nem o acho…)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes…
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio…

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim…
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Presságio

O AMOR, quando se revela,
 Não se sabe revelar.
 Sabe bem olhar p'ra ela,
 Mas não lhe sabe falar.

 Quem quer dizer o que sente
 Não sabe o que há de dizer.
 Fala: parece que mente...
 Cala: parece esquecer...

 Ah, mas se ela adivinhasse,
 Se pudesse ouvir o olhar,
 E se um olhar lhe bastasse
 P'ra saber que a estão a amar!

 Mas quem sente muito, cala;
 Quem quer dizer quanto sente
 Fica sem alma nem fala,
 Fica só, inteiramente!

 Mas se isto puder contar-lhe
 O que não lhe ouso contar,
 Já não terei que falar-lhe
 Porque lhe estou a falar...


Fernando Pessoa

O Amor É uma Companhia

Quando Eu não te Tinha

Todas as cartas de amor...

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Álvaro de Campos

Quando Eu não te Tinha - Fernando Pessoa

Quando eu não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo.
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, como dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima ...
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até à beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor —
Tu não me tiraste a Natureza ...
Tu mudaste a Natureza ...
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as cousas.
Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.

Só me arrependo de outrora te não ter amado.

Alberto Caeiro

O Amor é uma Companhia - Fernando Pessoa

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.

Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.

Alberto Caeiro

Não Sei se é Amor que Tens, ou Amor que Finges - Fernando Pessoa

Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-mo. Tanto me basta.
            Já que o não sou por tempo,
            Seja eu jovem por erro.
Pouco os deuses nos dão, e o pouco é falso.
Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva
            É verdadeira. Aceito,
            Cerro olhos: é bastante.
            Que mais quero?

Ricardo Reis

Cora Coralina


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Cora Coralina
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S2
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Assim eu vejo a vida - Cora Coralina



A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.

Cora Coralina

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

domingo, 1 de novembro de 2015

Gonzaga Neto - Amorragia



Ela era a pessoa errada,
no momento errado
e no local errado.

mas, sabe,
nunca gostei das coisas 
certinhas dessa vida.

Gonzaga Neto - Amorragia